2016-2017
Ana
Delicada, miúda, elegante? Fina. O termo define duplamente a sua presença: distinta e perspicaz.
Nascida nos anos 20 na Madragoa, do lado próspero, e de raiz nortenha, como quase todos os seus vizinhos, tinha um pai comerciante em casa de quem se comia manteiga. Mas Ana, traquina e sem peneiras, corria a casa das primas a comer pão com banha.
Casou com um homem do bairro, de família operária, a antítese do orgulho burguês da sua gente. E nasceu um filho. Bem mais tarde nasceria ainda outro, a provar a força daquela resolução de vida.
Viveram na linha do Estoril, mais perto ou mais longe de Lisboa. Ali, os filhos foram procurando os seus destinos. O mais velho quase ficou na Guerra de África e chegou no único dia em que, desde que o seu regresso foi anunciado, Ana não foi ao aeroporto.
Ele resistiu e ela também. Comerciante astuta, habituada a entrelinhas e a partilhar a vida de um sonhador da revolução, seguiu sempre em frente sem hesitações. Apoiou o filho militante e beijou com cuidado o mais pequeno, o artista.
Viu depois partir dois dos seus homens. O primeiro, o seu companheiro, o segundo, o primogénito, contranatura, como um golpe de destino cruel. O seu menino mais novo andava longe, muito longe. Mas mãe é mãe e o benjamim voltou para nela rever a luz da sua origem: a austeridade como forma de estar discreta com a sociedade, os gestos de carinho como amor à família, aos amigos, aos próximos.
Ai de quem, todavia, lhe quebrasse esses valores, o respeito por essas regras ou pelas suas decisões. A vida dela decidiu ela. Nem a família teve poder diferente. Bem lho dizia o companheiro da vida: ‘nem teu pai nem tua mãe querem que a gente se fale’ e Ana fez como entendeu.
Todavia, qualquer vida cheia de resistência e de amor não foge ao inevitável e acaba por se desvanecer. Lenta, mas inexoravelmente, vai-lhe faltando brilho e fôlego, embora ainda haja alma. Em cinco dias, suavemente, quase sem dor, Ana terminou o seu caminho. E esse foi tempo exato de “Ana”, que resultou de um pressentimento e da vontade imensa de prender o que nos escapa.
“Ana” é pois um olhar de carinho muito emocionado de um enorme amigo. É a luz sobre objetos e gestos que ele amaria prender. Guardar no seu coração o coração de uma mulher discreta, suave, mas firme e decidida que com ele riu de disparates e acarinhou o bonacheirão cão de água cinzento mais lindo do mundo, que também partiu.
O seu filhote, homem senhor de si, ficou, menino de novo, com os seus segredos únicos, num pranto contido de amor ausente.
“Ana” presta homenagem a todas as mulheres do mundo que, aparentemente frágeis e vulneráveis, são, decididamente, inquebráveis, inesquecíveis e exemplares para todos nós.
Nuno Verdial Soares